quinta-feira, 5 de abril de 2012

Felicidade é isso...



            Tudo caminhava sem problemas, até que chega a notícia:

            – Acudam, seu Arthur está morrendo, caído debaixo de um juazeiro, por trás do balde do açude. A família tem que correr se quiser vê-lo com vida.

            Seu Arthur está vivo na minha memória como um exemplo de homem probo, alegre e brincalhão. Nas minhas lembranças os fatos estão bem vivos. Caminhávamos eu, meu irmão, ainda crianças e minhas duas irmãs, moças já afeitas às intempéries da vida, que conviveram com a bonança e tiveram que acatar as carências com quem reaprenderam outra forma de existência. Nós que éramos crianças chorávamos alto, o que provocava choro nos vizinhos. Como ficar indiferente ao lamento de duas crianças para quem, no mundo restrito em que viviam, o pai era uma fonte de alegria, com surpresas renovadas, a cada dia? Minhas irmãs apenas soluçavam e, naquela linguagem auditiva, e ao mesmo tempo visual, pois o peito de cada uma arfava como se aqueles sinais de corporeidade quisessem guardar os lapsos de agonia que abundavam, visivelmente, como uma ponte entre as incertezas e o prenúncio da tragédia que poderia se abater sobre todos nós.

            De repente, voltei-me. Olhei para minha mãe, buscando não sei bem o quê. Era a imagem da dor que se estampava em sua face na impotência de uma realidade em que não se vislumbrava nenhuma solução? Não. Vejo ainda, nas minhas mais profundas reminiscências um semblante tranqüilo, um olhar sereno que transmitia esperança. E na rapidez com que nossos olhares se encontraram, naquele momento fugidio em que a vida podia parar, senti o aperto de sua mão e o reflexo de um sorriso, rápido, (será que se pode dizer como um pensamento ou como um relâmpago?) um sorriso que contaminou todo o meu corpo mirrado e como uma corrente de luz acalmava e imprimia segurança, um momento entre agonia e beleza. Corrente de fé que só as mães sabem transmitir. E como já estávamos próximos do local, eu já não ouvia os gritos ou os gemidos lamuriosos de meu pai. Escutava sim o seu riso alegre e vislumbrava sua fisionomia brincalhona e, ao mesmo tempo, inquieta. Um sopro de vida chegou até mim. Desprendi-me da mão de minha mãe e corri até meu pai. Cessaram seus gemidos. Todos já tinham se aproximado. Meu pai, parados os estertores, que nos idos dos tempos no sertão rural se chamava de “as vascas da agonia”, pois bem, meu pai olhou para todos, abriu um largo sorriso e bradou:

– Muito bem! Eu só queria saber se vocês gostavam de mim e, com toda sinceridade, gostei do que vi. E uma gostosa risada acompanhou as suas palavras.

Ficamos todos estarrecidos. Atitudes expectantes da parte dos vizinhos. Alívio da parte dos parentes. Eu, no entanto, fiquei dividida. Não sabia que atitude tomar. Agora sei que, a partir de uma atitude criativa, podemos disseminar o dinamismo da vida, criando expectativas como um sopro do espírito. Meu pai conseguia fazer isso.

Naquela hora, que fiz eu? Olhei para minha mãe e captei um olhar de alívio, mas ao mesmo tempo de indefinível compreensão. Além do alívio que mais se poderia perceber? Reconforta-me, passado já tanto tempo, dizer que deve-se encarar a vida como uma tarefa própria, em cada circunstância. Naquele episódio era como se a vida se conservasse sagrada na sua pobreza. Minha mãe apenas apertou minha mão mais forte e caminhou para a frente, ficando ao lado de meu pai, olhando-o com um olhar indefinível. Mas seu olhar ia mais longe. Parecia perscrutar o indefinido, com a certeza de que se tudo ia permanecer o mesmo, ninguém poderia encontrar resposta para determinadas fases da vida. Talvez se tenha uma prova de que os anos, as tristezas, as humilhações, as desilusões e injustiças, longe de afastarem o esquecimento, como se costuma pensar, insistentemente o reforçam.

Como julgar aquele acontecimento que, aparentemente, fugia a qualquer compreensão? Que escondia por trás de uma risada, resultante de uma situação que provocou tanta dor e sofrimento nas crianças e no restante da família? Apesar de não ser um riso triste, mas um riso alegre que subestimava a capacidade de compreensão do outro, hoje, repassando estes e outros acontecimentos ligados à vida de meu pai e que estão guardados nas minhas lembranças, descubro-o como uma pessoa feliz, de uma felicidade feita de coisas simples. Meu pai viveu isto na prática. Por isto ele conseguiu ser humilde sem ser subserviente, ser alegre sem ser hilário, ser amoroso sem ser piegas. Aparentemente contraditório, para uns era louco, para outros era genial. Para mim, o melhor pai do mundo, um exemplo de vida, o meu arrimo... E meu pai se foi aos 81 anos, um dia após o seu aniversário. Ao receber os presentes meu, de minha irmã e de minha prima, com um ar de bondade, disse:

– Estou riquinho.

Foi a última frase que ouvi de meu pai.

3 comentários:

  1. Que texto lindo, que historia maravilhosa!!! Cativa a alma e faz apertar o peito, é como se algo realmente fosse nosso, mesmo sem fazer parte do nosso contexto...

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  2. Belo. A breviedade da vida compartilhada. Um convite para o despertar de uma boa vida, um despertar para a melhor vida: uma vida simples.

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