sábado, 21 de abril de 2012

Uma história de amor



Dificilmente se poderia esquecer de uma menina como aquela. Vamos chamá-la de Marie. Durante muito tempo era a única menina da casa e competia nas brincadeiras com quatro irmãos. Era o xodó do pai, que não permitia que lhe furassem as orelhas e nem fizesse canudo nos seus cabelos, para que ela não sofresse. E a menina ia crescendo em estripulias e em bondade. Nas brincadeiras de que participava era a única pessoa que dava atenção a um menino de quem ninguém queria se aproximar. A mãe do menino era tão grata a ela que costumava dizer: “vocês quando crescerem vão-se casar”.

A mãe de Marie trabalhava fora e aproveitava os finais de semana para visitar as bancas de revista para tentar resgatar os livros que ela vendia para comprar revistas em quadrinhos, sua leitura preferida.

Certa vez a mãe de Marie, em pleno centro da cidade, vislumbrou um saco andando sozinho. Apressando o passo, viu que era Marie que conduzia um enorme fardo, seguida de um velhinho. Ela atravessou toda a cidade para deixar aquele senhor no mercado público. Segundo ela, ele já estava muito velho para conduzir tão grande peso. O povo da cidade comentou aquele fato durante muito tempo. Uns riam pelo inusitado da situação e outros diziam: “não deve ser fácil ser mãe de Marie”.

Aos onze anos foi expulsa do colégio onde estudava por ter tratado mal uma freira, o que segundo ela, entre dizer uma mentira ou optar pela verdade, preferiu a segunda. A mãe de Marie chamou a sua atenção, dizendo-lhe que ela devia ter sido educada, mas no íntimo de seu coração sentiu orgulho dela.

Seus irmãos a adoravam, assim como suas tias. Agora ela tinha uma irmã do coração, uma criança que foi adotada para neutralizar a exuberância de Marie. Chamava-se Gina e como os outros passou a idolatrar a irmã.

Precoce em tudo, foi mãe aos quinze anos. Houve muita dor e tristeza na família, o que foi superado quando nasceu um lindo menino que se chamou Antônio, em homenagem ao nome dos avôs. Esta história, quando me foi contada, me fez pensar: Que mulher não se sentiria realizada por ser mãe de alguém assim? Tive a oportunidade de conhecê-la e ela, já miticizada, é alguém muito especial. Aos dezenove anos separou-se do marido, mesmo amando-o, pois exigia mais respeito de um homem que, sendo mulherengo, não poderia mais privar de sua intimidade.

E assim a menina torna-se mulher. Estudiosa, inteligente e responsável, atua de modo exemplar no trabalho. Leal com os amigos, é gentil e sedutora. Mas dizem que é intransigente com aqueles de quem não gosta.

Gostaria de me aproximar dela de modo adequado, para conhecê-la melhor. Ela, como as pessoas de espírito bem trabalhado, deve ser circunspecta com as pessoas que não lidam com sua intimidade. Imagino que não terei chance de uma aproximação mais estreita. E se tivesse, então eu diria a ela:

Conheci toda a sua família. Tenho conhecimento de fatos que talvez até você desconheça. Também tenho uma filha que dificilmente você superaria em bondade, generosidade, enfim, uma filha que seria como você, orgulho de qualquer mãe. Mas agora que estou pensando no assunto, chego à conclusão de que fui uma mãe omissa, pois nunca lhe disse como ela é importante para mim. Eis por que a sua história, a história de Marie, me chamou a atenção. Que ela continue sendo tão autêntica, como tem sido até hoje é o que desejo. Quanto a minha filha, tão amada e tão querida, quero apresentar dois comentários que tenho certeza a farão pensar:

O tempo, em nossa vida, atua como mentor. Qual o tratamento que você dá ao tempo e como o aproveita?

Num segundo momento, filha minha, quando você estava esperando seu filho, eu lhe dediquei um poema que terminava assim e serve para reflexão:

E alegria de tê-la
Se enaltece
Na certeza de vê-la
Tão menina
Já mulher.

sábado, 14 de abril de 2012

Quero uma mãe de vinte e seis anos



Ele tinha apenas 7 anos. Morávamos numa cidade interiorana e tudo que fugisse à normalidade chamava a atenção. Um dia após o almoço, o menino chegou-se a mim e disse:

- Quero uma mãe de vinte e seis anos.

- Meu filho, acho que isto não é possível, pois já tenho trinta e oito anos e não posso mudar minha idade para vinte e seis. Também quero acrescentar que você nasceu de mim e assim não pudemos mudar esta situação. Alguém por acaso acha que eu sou muito velha para ser sua mãe ou você não se sente a vontade por ser meu filho?

- Não é nada disso, mas eu só sei que quero uma mãe de vinte e seis anos.

Tenho pensado nisso pela vida afora. O que significava para aquela criança ter uma mãe de vinte e seis anos? Como superar um preconceito latente, imbuído de situações outras que prescrevem uma espécie de rejeição no seio da própria família?

O tempo passou, os anos se passaram. Hoje revejo aquele menino, já homem feito e penso nos caminhos percorridos e no hálito do amor que permeia nossas vidas. Agora eu poderia dizer: quero de volta aquele menino, na inocência da sua infância, para cotejar os dias inseguros do passado. Mas o presente é que conta. Por isto olhar a vida com um olhar de esperança é investir nas promessas de uma vida mais alegre, mais afeita aos desígnios do divino. E agora eu é que digo: quero ser uma mãe de vinte e seis anos para recuar para a outra margem e viver em sintonia com as marcas identitárias de uma idade sincronizada na existência dele, para vivermos os mesmos sonhos e as mesmas esperanças.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O topo da montanha



Toda a família foi passar as férias na Fazenda Canto Alegre. Já se passaram muitos anos, e “até hoje” eu não saberia explicar o que significa “canto alegre”. Ladeado por serras, aquele espaço era privilegiado. Acordávamos, manhã cedinho, com a alvorada dos pássaros, o bimbalhar dos chocalhos, sons roufenhos de vozes e risadas contidas no curral que ficava próximo à casa grande. Os meninos se aboletavam nas janelas, esperando a primeira refeição do dia.

Enquanto isso, galinhas com as suas ninhadas, desfilavam na calçada, os pintinhos esmiuçando fragmentos minúsculos para comer. Era uma festa para os olhos, razão por que não importava alguns raios que de sol se apagavam dentro de casa, o esvoaçar dos insetos ao redor das cabeças e um friozinho insistente que obrigava a fechar o último botão dos pijamas.

De repente, uma voz sobressai:
- Minha gente, observe a neve na montanha.
- Que neve? – Essas manchas brancas que vão surgindo e desaparecendo. Mamãe, venha depressa e me diga: você gostaria de subir no topo dessa montanha?

Olhei para a serra, tão perto de nós e ao mesmo tempo tão distante, para os olhos curiosos das crianças, e respondi incontinênti: Sim, eu gostaria de subir com todos vocês e, lá em cima, ficaríamos deitados sobre os lajedos para contemplar o nascer do sol. Todos bateram palmas.

E “até hoje” ainda me inculca o locativo Canto Alegre. É o canto da natureza que empolga os moradores ou é o espaço circunscrito em toda a localidade, que faz a diferença?

Na minha saudade, que se localiza no tempo e no espaço, aninhada nas minhas lembranças, eu situo o Canto Alegre no topo de minhas evocações e consigo sentir o canto das coisas e dos seres que amei, tornando o Canto Alegre o lugar por excelência de minhas rememorações. 

terça-feira, 10 de abril de 2012

Ana



Como alguém pode estar em contato com a morte e permanecer o mesmo? Ela era apenas uma criança, com todas as características infantis próprias de sua idade. Magra, pequena e esperta. Chamava-se Ana. Tinha apenas sete anos. Querida e amada por todos, seus dois irmãos mais novos passavam despercebidos. Com seu andar matreiro, ia caminhando vagarosamente, para em seguida sentar-se no chão, debaixo de uma árvore que ficava à beira do caminho. Em atitude meditativa, observava as idas e vindas de formigas carregadas de mantimentos para alimentar o formigueiro. E sonhava: ela era a rainha das formigas e tudo estava sob seu comando. Através das formigas celebrava a vida.

Ninguém podia molestar as formigas que tinham no formigueiro o seu castelo, defendido por elas através da imaginação de Ana. Mas choveu forte no inverno daquele ano e o formigueiro, tragado pelas chuvas, finou-se. Ana chorou muito e uma grande tristeza introduziu-se na sua vida. Ficava horas a fio, com o olhar perdido, olhando não se sabe para onde. Sua irmã de quatro anos não entendia porque ela não queria mais brincar. Os dias vivenciam o curso do tempo. E...

A relva úmida da estrada de barro provocava frio e dificultava uma caminhada mais rápida. O caminho de repente se bifurca e impede que os caminhantes selecionem o próximo itinerário. Enfim, decidiram-se pelo lado direito. Uma menina de treze anos e sua irmã caçula de quatro anos buscam, no caminho úmido, indício de flores silvestres para celebrar a morte de Ana que, no alvorecer de seus sete anos fechou os olhos para a vida, abrindo-os no plano da eternidade. Tentar explicar a morte para uma criança é uma tarefa difícil:

- O que é morrer?
- É ir para o céu.
- E como se chega lá, é longe?
- Deixe de fazer perguntas.
- Mas eu quero saber.
- Não quer não.
- Diga se... Ana vai cheirar as rosas?
- Não pergunte mais nada, eu não sei dizer o que você quer saber.
- Ana vai se encontrar com as formigas?

No mistério da morte se abrem muitas perspectivas.
Mas a morte de uma criança, provocada por um acidente inesperado, modificou a vida de toda a família. Como explicar à irmã menor a ausência de Ana e como amenizar o infortúnio dos adultos, principalmente do pai que, chegando de uma viagem se deparou com todo aquele sofrimento, cuja testemunha, um vestido empapado de sangue, registrava o triste acontecimento, e uma viga, entre os escombros, era a representação da morte.

A família teria que se desterritorializar. Aquele espaço, minado pela tristeza, fazia que a dor se aninhasse em todos os corações. A mudança urgente representava uma fuga no espaço e no tempo. Ir para mais longe, afastar-se do lugar que atuou como uma maldição na mente de todos, era um meio de preparar a ponte entre tempo passado e o tempo que despontava pesado de lembranças, em que o transcurso dos dias traria o esquecimento. Mas não foi isto que aconteceu. Pela vida afora, aquela garotinha que tinha quatro anos quando Ana morreu, sempre ouvia de suas irmãs mais velhas:

- Você é má, não merece estar viva. Por que não se foi, em vez de Ana? E assim a morte cumpriu uma dupla função: intensificar as lembranças de Ana e diminuir a vida no círculo da existência daquela garotinha, agora adulta sem esperança, que desejava, na vida, contemplar um formigueiro, para dar sentido a sua existência.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Felicidade é isso...



            Tudo caminhava sem problemas, até que chega a notícia:

            – Acudam, seu Arthur está morrendo, caído debaixo de um juazeiro, por trás do balde do açude. A família tem que correr se quiser vê-lo com vida.

            Seu Arthur está vivo na minha memória como um exemplo de homem probo, alegre e brincalhão. Nas minhas lembranças os fatos estão bem vivos. Caminhávamos eu, meu irmão, ainda crianças e minhas duas irmãs, moças já afeitas às intempéries da vida, que conviveram com a bonança e tiveram que acatar as carências com quem reaprenderam outra forma de existência. Nós que éramos crianças chorávamos alto, o que provocava choro nos vizinhos. Como ficar indiferente ao lamento de duas crianças para quem, no mundo restrito em que viviam, o pai era uma fonte de alegria, com surpresas renovadas, a cada dia? Minhas irmãs apenas soluçavam e, naquela linguagem auditiva, e ao mesmo tempo visual, pois o peito de cada uma arfava como se aqueles sinais de corporeidade quisessem guardar os lapsos de agonia que abundavam, visivelmente, como uma ponte entre as incertezas e o prenúncio da tragédia que poderia se abater sobre todos nós.

            De repente, voltei-me. Olhei para minha mãe, buscando não sei bem o quê. Era a imagem da dor que se estampava em sua face na impotência de uma realidade em que não se vislumbrava nenhuma solução? Não. Vejo ainda, nas minhas mais profundas reminiscências um semblante tranqüilo, um olhar sereno que transmitia esperança. E na rapidez com que nossos olhares se encontraram, naquele momento fugidio em que a vida podia parar, senti o aperto de sua mão e o reflexo de um sorriso, rápido, (será que se pode dizer como um pensamento ou como um relâmpago?) um sorriso que contaminou todo o meu corpo mirrado e como uma corrente de luz acalmava e imprimia segurança, um momento entre agonia e beleza. Corrente de fé que só as mães sabem transmitir. E como já estávamos próximos do local, eu já não ouvia os gritos ou os gemidos lamuriosos de meu pai. Escutava sim o seu riso alegre e vislumbrava sua fisionomia brincalhona e, ao mesmo tempo, inquieta. Um sopro de vida chegou até mim. Desprendi-me da mão de minha mãe e corri até meu pai. Cessaram seus gemidos. Todos já tinham se aproximado. Meu pai, parados os estertores, que nos idos dos tempos no sertão rural se chamava de “as vascas da agonia”, pois bem, meu pai olhou para todos, abriu um largo sorriso e bradou:

– Muito bem! Eu só queria saber se vocês gostavam de mim e, com toda sinceridade, gostei do que vi. E uma gostosa risada acompanhou as suas palavras.

Ficamos todos estarrecidos. Atitudes expectantes da parte dos vizinhos. Alívio da parte dos parentes. Eu, no entanto, fiquei dividida. Não sabia que atitude tomar. Agora sei que, a partir de uma atitude criativa, podemos disseminar o dinamismo da vida, criando expectativas como um sopro do espírito. Meu pai conseguia fazer isso.

Naquela hora, que fiz eu? Olhei para minha mãe e captei um olhar de alívio, mas ao mesmo tempo de indefinível compreensão. Além do alívio que mais se poderia perceber? Reconforta-me, passado já tanto tempo, dizer que deve-se encarar a vida como uma tarefa própria, em cada circunstância. Naquele episódio era como se a vida se conservasse sagrada na sua pobreza. Minha mãe apenas apertou minha mão mais forte e caminhou para a frente, ficando ao lado de meu pai, olhando-o com um olhar indefinível. Mas seu olhar ia mais longe. Parecia perscrutar o indefinido, com a certeza de que se tudo ia permanecer o mesmo, ninguém poderia encontrar resposta para determinadas fases da vida. Talvez se tenha uma prova de que os anos, as tristezas, as humilhações, as desilusões e injustiças, longe de afastarem o esquecimento, como se costuma pensar, insistentemente o reforçam.

Como julgar aquele acontecimento que, aparentemente, fugia a qualquer compreensão? Que escondia por trás de uma risada, resultante de uma situação que provocou tanta dor e sofrimento nas crianças e no restante da família? Apesar de não ser um riso triste, mas um riso alegre que subestimava a capacidade de compreensão do outro, hoje, repassando estes e outros acontecimentos ligados à vida de meu pai e que estão guardados nas minhas lembranças, descubro-o como uma pessoa feliz, de uma felicidade feita de coisas simples. Meu pai viveu isto na prática. Por isto ele conseguiu ser humilde sem ser subserviente, ser alegre sem ser hilário, ser amoroso sem ser piegas. Aparentemente contraditório, para uns era louco, para outros era genial. Para mim, o melhor pai do mundo, um exemplo de vida, o meu arrimo... E meu pai se foi aos 81 anos, um dia após o seu aniversário. Ao receber os presentes meu, de minha irmã e de minha prima, com um ar de bondade, disse:

– Estou riquinho.

Foi a última frase que ouvi de meu pai.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Foi assim...


O sol iluminava o caminho por entre árvores frondosas. Havia toda uma orquestração de sons variados: o bulício das árvores, o chilrear dos pássaros, o canto das cigarras, o burburinho do arroio e um chocalho ao longe. Ela pairava acima de tudo e por isso conseguiu estabelecer um silêncio, como um sinal de isolamento de tudo que manifestava vida.
O seu pensamento mergulhou em suas reminiscências e fios da memória brotavam dos arabescos da natureza, agora silente e merencória. O sol adejava, em filigranas multiformes, filtradas pela copa da mangueira. E de repente ele surge do nada e seus olhares se cruzam. Onde estavam as pessoas que participavam da festa? Distantes, de modo que não se pressentia a sua vizinhança. A troca de olhares, persistente, criou um diálogo em que o silêncio zunia. E as ondas da percepção foram se atenuando, colocando os dois em sintonia. Então ele falou:
- Isto para mim é um lugar sagrado, com quem eu nunca partilhara. E agora quero fazê-lo com você. Tudo isto que está em nosso derredor agora nos pertence, se você quiser. Os caminhos que trilharemos serão os nossos caminhos e na nossa passagem eles deterão a vida, que organizada, fará brotar novas vidas. É preciso apenas saber ouvir a voz da natureza, neste diálogo ininterrupto em que escutar, ver, sentir, degustar, cheirar, atuam como suplemento da própria existência. Seremos agraciados com o troféu de um vigor que imprime ao ato de existir o esplendor de outras vidas. Desfilaremos diariamente para gáudio de nossos filhos que, tirando-nos do castelo dos sonhos, nos colocarão no mundo real que fará jus a uma realidade não mais competitiva, mas agora plena de objetivos que dão nome a um forte arranjo de interesses mútuos. Saiamos para o sol. Deixemos que a voz da natureza, com a sua linguagem peculiar, dê vida a nossa existência.

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Agora ela sabe o que a vida reservara para si. E contempla, sentada numa pedra, vizinha a uma pequena cachoeira, cinco crianças tomando banho em locas de pedra, gritando, correndo e pulando pequenos pedregulhos que ficavam à margem da estrada. E ela, voltando a um passado próximo dizia a si mesma: - encontrei o sentido da vida, fazendo do real uma ponte para rastrear o sonho. E se deteve numa mangueira que se divisava ao longe... Uma mangueira que guardava, na sua sombra, agora vetusta, resquícios de diálogos com a natureza, em toda a sua gama de linguagens, sobressaindo, ainda, um diálogo do Ser para o Ser que tornou efetiva a eficácia do diálogo entre humanos.